terça-feira, 25 de maio de 2010

Uma Madrugada, Um Carro, Um Solitário

Acho que foi num sábado à noite, meio friento, blasé, que me encontrava chateado com algumas coisas, estava enfastiado com a estupidez alheia, ou a minha própria, sei lá. Resolvi pegar um carro de estimação (sou entusiasta destes troços de quatro rodas), muito querido, de valor sentimental incontável, e rodar com o mesmo, sem muita direção e objetivos reais. A cidade onde moro é muito peculiar, tem tipos interessantíssimos, mas nesta noite em particular, queria os ignorar. Queria só queimar aquela gasolina velha naquele tanque de mais de dezoito anos, queria somente fazer os injetores trabalharem em alto fluxo, frear forte e sentir as pastilhas em chamas, com seu cheiro de amianto borbulhante. Era uma oportunidade única, senão rara. Minha cidade estava vazia, é outono, não há mais aqueles oniscientes turistas, e seus passeios aleatórios na avenida da praia a menos de trinta quilômetros por hora, observando a beleza impar de nossos jardins à beira mar, ou tentando pegar uma última olhada numa bunda estonteante caminhando, ornada com um belo vestido ou shorts curtos, antes de pegarem estrada de volta para as suas vidinhas escrotas. As avenidas estavam livres, era um convite a uma pilotagem consciente, a um festival de esticadas naquele elástico clássico seis cilindros em linha, e paradas obrigatórias em semáforos desnecessários.

Esperei o motor esquentar. Seus tuchos são mecânicos e exigem esmero nas primeiras acelerações. Como um médico, calculei cirurgicamente a tocada, e dosei nas rotações por minuto, até que o barulho metálico das guias de válvulas cessassem. Passaram-se as esquinas, estava frio, deixei os vidros a meia altura. Não liguei o rádio, não há claves musicais que substituam aquele borbulhar dinossáurico somente ouvido em unidades de força como esta. Estava em extase. Era a minha droga, o meu estado repentino de paz equacionava-se em ecos de sons advindos do escape, que refletiam nas esquinas e paredes das estranhas construções desta cidade. Num certo momento senti que ela estava pronta, e resolvi buscar o estridente som aviônico vindos de um coletor em plena exaustão dos gases, com seis ou sete mil rotações por minuto a cada estouro de marcha a frente. O coração palpitava, parecia que aquela era a primeira vez. Não era. Era somente...especial, como todas as outras vezes. Era só mais uma carga de adrenalina liberada em doses cavalares pelas minhas suprarenais, e assimilada pelo corpo, como se a minha frente não houvesse mais nada, senão a redenção. Reduzi, com vontade, pois a responsabilidade me chama.

Resolvi entrar em cruzeiro e a última engrenagem duma caixa de marchas automática, pero no mucho, em comparação com as maravilhas de hoje, me fizeram assumir aquele estado zen no volante, que só motoristas experientes conhecem. Você está alerta, mas relaxado, seu corpo esmorece nos assentos de couro, a suspensão moleja ondularmente pelas "maravilhosas" e "bem cuidadas" vias daqui. Sinto os amortecedores baterem seu curso total, um som seco e oco chega aos meus ouvidos, e me decepciono com as ruas, com o país, com os caminhões. Enfim, me solidarizo com meu amigo de aço, peço desculpas pelo mau jeito, e me desalinho com os buracos. Um grupo de garotos, recém saídos de alguma boate, ou bar, para do meu lado. O som está alto, ouvem algo como Hardcore ou Ska nacional, acho que Charlie Brown Jr, senão me falha a memória, já em frangalhos. Estão num desses carros bem modernos, decorados, japoneses, silenciosos, rápidos e fáceis de manejar. Não me importo com as provocações, sinto na verdade um grande alívio, afinal de contas, por que foram escolher logo meu veículo? Respeito é a resposta. -Não vou correr com vocês, caras, não aqui - com um sorriso irônico. Me perguntam os incautos: -que carro é esse, grande? Não respondo, arranco com vigor e deixo que a máquina dê seu cartão de visitas naturalmente, se apresente aos meninos. Eles ficam pra trás e eu volto à minha experiência.

Em algum momento deste passeio me lembro de algumas coisas na vida. Por alguns minutos penso num objetivo, num lugar para ir. Será que lá encontrarei a resposta desta saida, aparentemente, sem utilidade? Não, lá não encontrarei ninguém, somente um espelho da minha própria insistência inescrupulosa, é melhor vagar mesmo. Paro num posto destes com loja de conveniências, meu companheiro também precisa se abastecer. Dou a ele as octanas que precisa, e vou também tomar algo. Tempos modernos e bom senso me dizem para evitar o que os outros ao meu redor tomam naquele local. Peço um café para viagem, sem açucar, sem leite, para bebericar mesmo. Vejo as pessoas bem alteradas por lá, transformam o posto num bar, numa boate, num centro de entretenimento a céu aberto. Moças bonitas, jovens, deliciosas. Rapazes com roupas coloridas, bonés reluzentes e falando alto. Alguns ouvem música alta, seus carros são incrementados, atolados de acessórios sem muita utilidade. São jovens, querem se divertir e têm pouco dinheiro. Um brinde a eles, eu penso. Respeito muito quem sabe curtir, mesmo não gozando de grana no bolso. Ricos são chatos pra c...

Meu café há tempos gelou, me vejo um tanto longe de casa. Nem olho o odometro, mas sei que rodei bastante. Acho que vai amanhecer logo. Não mais quero correr, ou andar devagar. Meu amigo de aço se tornou uma companhia enfadonha, ligo o rádio, ponho um CD. Pink Floyd, Dark Side Of The Moon. Nossa, já ouvi este álbum de trás para frente, e ainda assim o mesmo é capaz de me fazer transpirar, pensar, viajar sem sair do lugar. É uma ótima idéia, continuemos o passeio. Acho que estamos indo muito bem, minha cabeça se sente melhor, mais propensa ao sono pacífico e onírico. Aquela inquietude está passando e eu abro o porta luvas em busca de uma bala, ou drops que esteja por ali, jogado. Encontro um puro, um cubano, um delgadito, que há tempos estava guardado, não me lembrava mais. -Sabes bem? Esta madrugada está se tornando uma das melhores da minha vida, pensei. Acendi o bastardo, há meses não punha um na boca. Podia ser mais completa? Claro, poderia sim...eu adoraria que fosse...mas estava bom daquele jeito. Eu estava sendo eu, estava feliz sendo só, estando só, numa coisa minha que só eu valorizo, olhando pessoas, paisagens, apreciando o momento. Era a reflexão, mais um episódio do autoconhecimento, era a homologação de um cara legal, num carro legal (é legal mesmo - COOL), fazendo coisas legais para ele. A música, a gasolina, o charuto, o café, os bêbados, os meninos, as mulheres, Charlie Brown (risos), Pink Floyd, tudo isso, porra. Já estava na esquina de casa, sorri, desliguei a máquina. Ouvi os estalos de metal esfriando, estava realizado por aquele dia e seu desfecho. Acho que vou trocar o óleo, ou as velas sei lá...amanhã penso nisso.

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